17ª Festa Literária Internacional de Paraty 16/07/2019
Posted by Maria Elisa Porchat in Atualidades, Literatura.Tags: diversidade, Euclides da Cunha, Flip, Liberdade de expressão, Os Sertões, polarização política
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O sertão virou Flip. A Flip virou sertão.
Em parte. O trocadilho vale de certa forma, porque entre todas as Flips a que compareci, essa foi a que trouxe mais o homenageado para dentro da programação, no caso Euclides da Cunha com sua obra Os Sertões. Estava nas falas dos palestrantes, no título das mesas com nome de rios, vilarejos e até um meteoro da região, na programação de filmes e músicas. Por outro lado, o que mais marcou essa Flip não foi o sertão, mas a diversidade. Diversidade de público , de espaços culturais e de entretenimento.
Meu resumo será dividido como Os Sertões em : A Terra ( Paraty nesses dias), O Homem ( as pessoas em destaque ) e a Luta ( palestra de Gleen Greenwald, da Intercept). Desculpe, Euclides.
A Terra
Paraty fez jus ao reconhecimento pela Unesco de Patrimônio da Humanidade por sua biodiversidade e pela riqueza de sua cultura. As ruas nunca estiveram tão lotadas, por pessoas com perfis dos mais diversos, unidas apenas pelo entusiasmo e pelo interesse em se entreter, aprendendo. Havia filas enormes – para palestras, para autógrafos, para restaurantes.Nunca foi tão difícil andar pelas pedras tortas com aquela multidão, não só de visitantes mas de artistas da região, indiozinhos que cantavam, poetas que declamavam, músicos com instrumentos variados e ambulantes que vendiam artesanato e doces caseiros . Não importava que o barulho do artista atrapalhasse a audição de uma palestra transmitida pelo microfone na rua lotada.Todos tinham direito ao espaço. Ouvi dizer que a Flip , em suas primeira edições, foi uma festa elitista, mas hoje é festa de todos e todas, como faziam questão de frisar os palestrantes, ao dizerem :” Boa tarde, todos e todas”.
A oficial Tenda dos autores , a única programação paga, teve seu espaço reduzido e lotado, em contraponto às filas enormes para as programações gratuitas.Neste ano foram inúmeras e excelentes as atrações culturais paralelas, promovidas por parceiros da Festa Literária. Cito como novidade para mim, o caminhão Conflitos montado pela Universidade Federal de Minas Gerais e Instituto Moreira Sales, com fotos e vídeos sobre os principais conflitos da história do Brasil; a programação audiovisual do Sesc, a Casa Para Todos , o barco da Flipei ancorado no Pontal, sem falar nos espaços que já conhecia, como a Casa da Cultura, onde assisti a uma palestra sobre Dom Pedro I e a Casa Folha com palestras que congestionaram a rua do Comércio. À noite, o Cinema na Praça, passou filmes nacionais como Deus e o Diabo na Terra do Sol, Cabra Marcado para Morrer e outros. Muitos outros espaços culturais havia, que não deu para visitar.
A Terra Paraty esteve o tempo todo esplêndida, com céu limpo e a lua crescente fazendo seu reflexo na água do canal. Um encantamento.
O Homem
Euclides da Cunha esteve em destaque , como já escrevi, pelo que representa a guerra de Canudos. A população pobre foi massacrada , fruto de uma campanha enganosa da parte do governo republicano que criou uma falsa ameaça de perigo que o grupo de revoltosos liderados por Antonio Conselheiro representava. O escritor, que no início de seu trabalho jornalístico acreditava nos valores do Exército, enxerga um pouco tarde a fraude, conclui que o povo a ser defendido eram os pobres e analfabetos de Canudos e acaba por acusar a expedição militar de criminosa. Esse conflito, nas mesas de Paraty, serviu de comparação com outros que aconteceram no Brasil, pelo autoritarismo, falsas campanhas , desastres ambientais recentes , morte de negros em periferias, entre outros mais.
A professora aposentada Walnice Nogueira Galvão, emérita da USP, estudiosa de Os Sertões, abriu a festa e já antecipou a analogia que viria a ser feita em outras mesas, do livro com o Brasil do nossos dias .Chegou a dizer que o Brasil é Canudos .Com coragem e sutileza, fez um paralelo às fraudes autoritárias da nossa história e disse que o livro deveria ser lido todos os dias para “ que se entenda o que acontece com os pobres do país”.
Nesta linha, destaco também a palestrante Aparecida Vilaça, doutora em antropologia social e professora do Museu Nacional recentemente destruído pelo incêndio. Fez um relato comovente das experiências vividas por mais de 20 anos numa comunidade indígena em Rondônia e seu laço afetivo com seu pai indígena Paletó, durante seu trabalho de pesquisa. Testemunhou o caráter e a sabedoria dos índios com quem conviveu , defendendo com doçura e veemência a preservação das terras e da cultura indígena , com a qual temos muito a aprender. Pedindo desculpas pelo pieguismo, ela pede amor à diversidade a quem está com seus direitos ameaçados.E conclui: “ Se não houver diversidade, morremos “
O músico e literato José Miguel Wisnik mostrou como o poeta Carlos Drummond de Andrade já previa, nos seus poemas e artigos, os desastres socioambientais em Minas , atacando a exploração feita pela Vale.
Wisnik também participou de uma homenagem ao jornalista falecido no ano passado, Otávio Frias Filho, na Casa Folha, ao lado do advogado da Folha Luis Francisco Carvalho Filho e a colunista Tati Bernardi. Eles apresentaram o escritor e artista Otávio Frias que por herança passou a dirigir um poderoso veículo de comunicação, o que , segundo Otávio, lhe roubava o tempo de criar. Entretanto criou como diretor o bem sucedido Projeto Folha.
Soube que Wisnik também fez uma homenagem a Chico Buarque de Holanda através de suas música na Casa Paratodos.
A escritora Marilene Felinto arrancou risos da plateia com sua impaciência bem-humorada. Criticou Euclides da Cunha, dizendo que os ancestrais dela provavelmente foram sobreviventes da degola em Canudos.Acusou o escritor de ter feito “ jornalismo comprometido com o Exército” vindo Euclides depois a se desculpar por isso. “A mim pouco importa a redenção de Euclides”.
O neurocientista Sidarta Ribeiro falou sobre sonho e lamentou que a sociedade não se preocupe em sonhar, em prever o futuro e assim se preparar para as tempestades que se avizinham.
Samuel Pessoa, doutor em Economia pela USP falou na Casa Folha sobre discriminação racial no mercado de trabalho. Defendeu a política de cotas que considera essencial por estimular mais esforço ,tanto dos membros da elite como dos mais pobres , mas alertou : o avanço só acontecerá quando for construído um setor público que consiga oferecer serviços básicos de qualidade a todos.
Muitas outras convidados apresentaram depoimentos interessantes e ausentes deste resumo.
A Luta
A Flip é um espaço público onde se expressam posições políticas exaltadas. O que aconteceu na noite da sexta-feira foi um retrato da lamentável polarização e intolerância vigentes no país.
No barco da Flipei, ancorado no Pontal da praia, esperava-se para a palestra o jornalista Glenn Greenwald, do site Intercept que divulgou as denúncias contra o Sérgio Moro. Junto com ele o humorista Gregório Duvivier. Juntou-se um número enorme de simpatizantes do PT neste lado do canal para ouvi-lo. Havia rumores de que os defensores do Moro e Bolsonaro preparavam um protesto no momento desta palestra, mas o que se viu foi surpreendente. Do lado direito do canal visto da ponte, um grupo de manifestantes empunhavam bandeiras amarelas, cantavam o Hino Nacional, com enormes caixas de som rebocadas por um carro e soltavam rojões com o intuito de abafar a fala do Greenwald. Era um grupo bem menor do que a concentração “Lula livre” do lado esquerdo do canal, mas muito bem equipado e barulhento. A margem esquerda revidava, cantando também o Hino Nacional e a versão de Bella Ciao. Glenn Greenwald chegou a Paraty num carro de vidro escuro e depois de lancha ao Pontal, escoltado por seguranças .Falou por alguns minutos .Defendeu o jornalismo investigativo e prenunciou novas publicações contra o juiz Moro.
Provocações dos dois lados , parecendo torcidas de futebol, só não viraram confronto violento pela intervenção militar na margem direita e pela água do canal iluminado pela lua separando os dois grupos .
No fim, a liberdade de expressão ganhou a luta , mas a cena escancarou bem o Brasil de hoje, dividido em posições políticas intransigentes e arrogantes. Até quando isso vai ?
Por que é impossível hoje alguém, com posição política definida, ouvir o que outra pessoa, com posição diferente, tem a dizer ou revelar ?
Que a paisagem de Paraty naquela noite de lua crescente, verdadeira bandeira branca de paz sem nenhuma nuvem negra no horizonte seja um sinal de um futuro sem extremismos e sem tensão social.
“ Viva Paraty” com seus fóruns de palavras sábias e sua natureza que traz paz de espírito. Vida longa à Flip !
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