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Flip 2016 06/07/2016

Posted by Maria Elisa Porchat in Atualidades, Literatura.
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  • A  Flip 2016 foi a  mais politizada de todas.  E se faltaram recursos para a sua organização , isso não empobreceu o conteúdo e a  pauta dos debates refletiu  os problemas que afligem a vida  contemporânea, no Brasil e no mundo.
  • A crise econômica  ficou evidente na  cidade , com menos   filas  na porta dos restaurantes  badalados e  com um número  maior de pessoas fora da Tendas dos Autores,  isto é, no telão  e nos eventos gratuitos. As editoras de livros que fecharam as portas, entre elas  a Cosac Naif,  presente nas festas anteriores, foram homenageadas pelo curador Paulo Werneck  já na abertura dos  debates. E se, como dizem, o bom da crise, ( se é que tem um lado bom!) ,  é questionar,  não faltou  protesto e questionamento em Paraty nessa Flip.
  • A polarização política  foi marcante, como era de se esperar.Mais do que qualquer verso da poeta homenageada Ana Cristina César, a frase  – “Fora, Temer !” era  ouvida,   ora de forma exaltada, ora cômica, dita por  palestrantes e populares, escrita em cartazes e luzes no palco, dentro e fora das tendas, parecendo   um slogan da Festa. Um poema do Temer chegou a ser  lido e ridicularizado por uma poeta convidada   e  o uso que ele faz de mesóclises foi motivo de chacota . Nada a ver. A  verdade é que   também não se viu  nem ouviu um –  “Volta, Dilma!” –  nem a defesa de uma figura política  que viesse substituir o presidente interino.  Tinha  a  impressão  de que o  repetido “Fora Temer”   significava mais um “Fora, classe política” ou um grito de socorro.
  • Protestou-se contra  a ausência de negros nas mesas debatedoras e na  platéia da tenda , contra a educação atual,  o machismo,o  progresso  que depreda, a especulação imobiliária  que levou à morte um caiçara em Trindade, perto de Paraty  e também contra a homofobia. Duas mulheres caminharam pela Tenda, erguendo uma faixa  em protesto contra as informações sobre a poeta homenageada  onde se lia  : “Ana C. era gay. Por que omitir ?”
  • Na Casa Folha houve um  debate quente sobre direita e esquerda no Brasil,com o doutor em Economia  Samuel Pessôa  e o deputado carioca do Psol  Marcelo Freixo, ambos colunistas da Folha.  Sob os gritos de “Vem pra rua! ” da calçada, Samuel acusou a esquerda brasileira de não entender nada de economia, de pobreza intelectual  e de não olhar para  a história recente da América Latina  antes de  definir seus pontos de vista. Já o deputado do Psol  atacou representantes da direita no Brasil  nas questões de racismo e homofobia .Para ele,  limitar o debate à economia enfraquece a democracia porque as pessoas não vão ficar mais ou menos felizes por causa da taxa Selic. Do lado de fora uma pessoa  gritou que  o discurso de Freixo era vazio.Recebeu vaia.
  • Dentro da Tenda dos Autores, no cenário do palco  havia  uma  aquarela  bonita  e sobre ela   lia-se a frase   da poeta Ana C.( era como a homenageada gostava de ser chamada ) : “As construções humanas desafiam os seus criadores e emitem ondas.”
  • Por falar em construção, dois arquitetos e urbanistas , o italiano  Francesco Careri e a pernambucana Lúcia  Leitão  criticaram as cidades sem  calçadas e sem espaços de convívio, o que  expressa uma sociedade  individualista que  prefere se isolar em condomínios fechados . Lembraram que na Europa o espaço da rua é ato de cultura e de democracia e  recomendaram  que as pessoas baixem  o nível do medo e caminhem  pelas ruas , encontrem e enxerguem  outras pessoas e  se aproximem  da humanidade.   E  que  vão  além na caminhada, explorando zonas inesperadas, com intenção estética. Espero que  meus netos  um dia   possam caminhar sem medo  por onde quiserem ir.   A mesa também abordou  o número crescente de refugiados   no mundo, o  que vai exigir da ONU e dos governos , cidades  mais acolhedoras.
  • O individualismo  extremo  e a angústia da nossa sociedade foram abordados de uma  forma   interessante  na mesa “ Show do Eu” que reuniu  o psicanalista paulista  Christian  Dunker e a argentina Paula Sibilia. Individualismo  que se mostra na mania das selfies e nas redes sociais, no marketing pessoal,  que se manifesta  no  culto do corpo,no narcisismo e no consumismo. A pessoa   busca o olhar do outro apenas para se definir, mesmo porque o outro tornou-se perigoso   , o que  a leva  a construir muros. Sair de dentro de si para ser visto pelo outro traz um vazio, um sofrimento e o mercado se aproveita disso para vender soluções  milagrosas e remédios.
  • A educação de hoje  é responsável por esse individualismo exagerado. Nasce  Sua Majestade o Bebê,  que durante toda a sua formação  tem seus conflitos  negados   até crescer e se deparar com uma realidade adversa. E aí o que fazer ? Muda-se para um  lugar bem distante, como  Austrália.
  • Para os palestrantes, mudar  esse culto ao individualismo cabe não só aos pais mas também à escola,   que hoje precisa ser reinventada, com professores  que  desejem estar mais  próximos de seus alunos em termos de  conhecimento  e  dos seus  conflitos.
  • A mesa que reuniu os escritores J.P.Cuenca e a mexicana  Valéria Luiselli  sobre seus livros que apresentam os limites da ficção e da realidade,  mencionou a falta de educação literária.A criança está entre o que a escola  manda ler  e o que o mercado manda comprar , como por exemplo, o livro sobre vampiros.E no meio disso está a literatura. Para Cuenca, a Flip faz do escritor uma espécie de caixeiro viajante,  um ator  a fazer  performance para vender seu livro.
  • Dois repórteres investigativos , o inglês Misha Glenny e o Caco Barcellos puseram o dedo na ferida social   do tráfico  , ao mostrarem  que vivemos no Brasil uma guerra não declarada, que não choca a classe média porque envolve os mais pobres e desassistidos. A taxa de mortes no Rio de Janeiro é três vezes maior do quem em Nova Iorque e a causa é o tráfico da cocaína, fora do controle das autoridades. As drogas nunca deixaram de existir na Rocinha mesmo com a presença da polícia. Juiz e promotor não sobem o morro. Caco Barcellos provocou a platéia  ao dizer que nos achamos muito sabidos, mas o trabalhador de baixa renda é muito mais bem informado . A empregada doméstica conhece a  realidade   dela  e a da patroa ,mas o inverso não acontece.  Hoje o tráfico compete com o trabalho formal  e é difícil para uma mãe que trabalha como  doméstica convencer  o filho que sustenta a casa com o dinheiro do tráfico a seguir seu exemplo de trabalho honesto.A política de combate às drogas para ele passa  pela descriminalização.Para o repórter, quem proíbe drogas é a favor do tráfico.
  • O momento de descontração aconteceu   com os humoristas – o português Ricardo Araújo Pereira e Tati Bernardi, mediados por  Gregório Duvivier . O humor também politizou.  Começou com o cumprimento dito bem rápido pelo  Gregório : “Boa tarde foraTemer”.E terminou com um desabafo de Tati Bernardi sobre a tristeza que sente em relação  ao Lula,  uma vez que desde criança aprendeu com a mãe a amá-lo. Foi dito que o momento em que os políticos nos fazem rir é quando os humoristas devem nos fazer pensar.
  • Para a  neurocientista Suzana Herculano-Houzel,  o Brasil está fadado a copiar tecnologias de fora. Hoje ela trabalha numa universidade dos Estados Unidos e foi criticada por ser mais uma cientista a fugir do Brasil. Lamenta a condição de trabalho dos cientistas  por aqui, condição piorada com a decisão do Temer de não ter mais um ministério dedicado à ciência.  Disse que as pessoas não têm idéia de como a ciência é importante para suas vidas. E aos que dizem que os cientistas tiram a poesia das coisas por dizerem que somos apenas o produto da matéria, ela diz que  é muito bonito  ver a forma como as moléculas se organizam e chegam a formar pessoas capazes de transmitir e provocar emoções. Também participou da mesa o cirurgião de cérebros Henry Marsh que comoveu  a platéia ao falar  das cirurgias complicadas e mal sucedidas que fez.  Ambos foram questionados sobre a utilidade imediata da neurociência, principalmente no que se refere  ao prolongamento da vida, mas  responderam que  não se pesquisa com esse propósito.   O escritor Saramago nessa hora  foi mencionado  por escrever   que precisamos fazer  as pazes com o fato  de a  vida ter prazo de validade.
  • Santos Dumont  foi homenageado numa mesa que juntou o romancista holandês Arthur Japin e  o artista plástico Guto Lacaz.  Tímido, trágico, solitário, Dumont  parecia não se encaixar na sociedade.Primeiro  homem a voar , foi apresentado como um designer genial, de grande sensibilidade, que deve ser fonte de inspiração para todos os designers, na arte de construir coisas para um mundo melhor.
  • O jornalista e poeta premiado Leonardo Fróes  há muitos anos  abandonou a turbulência da cidade e foi com a mulher morar num sítio .Falou de um modo maravilhado do amor que tem pela natureza, muito maior do que o prazer que sentia com a vida social. Criou o hábito de subir montanhas, recomenda o hábito  pelo aprendizado com as descidas , ouve as vozes das espécies e encontra entre as árvores  a inspiração para suas poesias.  Interrogado sobre o desastre de Mariana, Fróes respondeu que o Brasil todo corre o mesmo risco por causa da indústria de mineração  e porque os morros hoje são fatiados e deformados.A única solução para evitar catástrofes como a de Mariana  é  evitar o consumismo. Um carro, por exemplo, para Fróes, tem de ser usado até acabar.
  • A mesa mais procurada da Flip, a dos ingressos que logo se esgotaram, foi a da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura 2015.  Auditório lotado, passeata fora da Tenda,  Svetlana  cativou logo ao entrar no  palco .Falou das pessoas que sofreram em guerras e  de Chernobil , acidente nuclear que mudou radicalmente a vida de muitas pessoas. Vendo a figura humana e o jeito amigo de Svetlana  deu para entender  como ela consegue  tirar dos seus  entrevistados  a confissão de seus sentimentos mais escondidos. Agora escreve um livro sobre o amor, e rindo, disse que está sendo mais difícil do que escrever sobre a guerra. De qualquer forma  hoje não tem mais capacidade de ir a um campo de batalha e de ver cadáveres. Quer escrever em casa e curtir sua neta. Svetlana foi aplaudida de pé .
  • Por sua vez, outro representante da literatura de fora , em vez de aplauso  recebeu vaia.O poeta sírio  Abud Said,   convidado para falar sobre a guerra  no seu país, recebeu vaias e desapareceu logo que a apresentação terminou. Ele  obteve sucesso escrevendo  no Facebook,  sobre sua rotina, seus parentes e  sobre a vida. Seu irmão foi morto pelo Estado Islâmico e sua mãe vive como refugiada na Turquia.  Disse que   virou  escritor  sem querer e que   estava adorando o serviço cinco estrelas que a Flip  estava lhe oferecendo.  Abud Said  se recusou a falar da Guerra na Síria, sobre o Estado Islâmico e sobre os refugiados,   apesar das perguntas insistentes. Até aí a platéia  aceitou  diante do seu jeito   modesto. A vaia  veio quando ele se pôs a criticar os jornalistas , os intelectuais e os defensores dos direitos humanos, que segundo ele, fazem um jogo sujo e  interesseiro  do qual ele não quer participar.
  • Bem, da   poeta  Ana Cristina César muito se falou , de sua figura , da sua vida curta e intensa, mas sua poesia é  difícil de ser lida. Representante da poesia que fica à margem das editoras, aquela nem que o autor produz  e distribui seus  textos,   Ana C.  misturava  gêneros, não separou  poesia de prosa, inseriu  diários , cartas e  foi avessa à poesia confessional. Na Flip foi comparada a Clarice Lispector  pela aposta que fizeram no poder da linguagem. Feminista, embora recusando rótulos, achava que a mulher tinha  de lutar contra estereótipos .Suicidou-se ainda jovem , teve em vida apenas um livro publicado mas até hoje exerce influência nos poetas contemporâneos. Foi  uma voz bem diferente na literatura, o que  é bem do agrado da curadoria da Flip.  Na última mesa, dois críticos literários, Sérgio Alcides e Vilma Arêas fizeram um balanço da obra de Ana Cristina. Vilma, que foi professora da poeta , leu um poema, bem emocionada, escrito por  um outro representante da literatura marginal para a Ana C.  depois que ela morreu.  O poema terminava  assim :
  • “ Ana Cristina, cadê você ?
  • Estou aqui, você não vê ?”
  • No encerramento, o curador Paulo Werneck convidou o público a recitar o verso, e todos, dentro e fora no telão responderam  :  “ Estou aqui, você não vê ?”
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