Flipei de novo em 2015 07/07/2015
Posted by Maria Elisa Porchat in Atualidades, Diversos, Literatura.Tags: Flip da crise, literatura, Mario de Andrade, Matilde Campilho, modernista, O Turista Aprendiz, violência em Paraty
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Flipei de novo.Pela sétima ou oitava vez, já perdi a conta. E a aqui vai minha costumeira peneirada, não se trata de um resumo, mas de algumas anotações sobre a Festa Literária de Paraty.
Mário de Andrade tem um livro sobre uma expedição que fez e que foi tema de mesa – O Turista Aprendiz. Daí eu pergunto: não é também um turista aprendiz aquele que frequenta a festa de literatura ? Porque tem interesse no que os autores convidados têm a dizer, mas também busca entretenimento, indo de um lado pra outro, da tenda pra Casa Folha, de lá pra Casa da Cultura, em seguida aos musicais da Praça Matriz , não querendo perder nenhuma mesa, nem as delícias da rua e da praia.
E o turista aprendiz sempre aprende. Fica sabendo que um recepcionista de hotel em Paraty estranha quando um hóspede declara como profissão a de poeta, que no entanto é um ofício que não dá descanso nem quando se dorme. Um trabalho que exige rotina e disciplina.
Aprende que a literatura erótica mostra a precariedade humana e que aqui no Brasil ela geralmente é de deboche, enquanto em outros países chega a ser trágica.
Que em relação ao luto, o esforço intelectual pode ajudar o sofredor e que o ato de escrever sobre a dor pode ser um dos caminhos para superar a perda da pessoa amada.
Fica sabendo a dimensão da força política de uma charge e que um desenho engraçado serve de arma poderosa contra os opressores.
Que a alta matemática, não aquela que se aprende na escola, mas a dos sistemas complexos, tem beleza e dá prazer. Pode ser feita em qualquer lugar e em qualquer hora. Existem estereótipos e muita resistência do público com respeito a essa área do conhecimento, conforme o depoimento dos premiados matemáticos que participaram da Flip.
Assustado, o turista de Paraty toma conhecimento da situação complexa do narcotráfico no México, onde todas as áreas da sociedades estão corrompidas pelos cartéis de crime organizado numa rede complexa que une Europa, Estados Unidos e América Latina.
Aprende ouvindo a palestra do economista Eduardo Giannetti e do neurocientista Sidarta Ribeiro que estamos a caminho de entender a consciência, que existe sempre uma máquina biológica atrás da consciência e que somos sempre regidos por um mecanismo físico. Em certo momento Giannetti, que pesquisa as consequências éticas de nossas decisões e a origem da nossa consciência lança uma pergunta que fica sem resposta : o que fazer contra a crise civilizatória? Sobre a arte, Giannetti observa que ela tem que ser valorizada não do ponto de vista estético ou do entretenimento, mas do conhecimento humano e do reconhecimento de valores.
As historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling que lançam Brasil : uma biografia ensinam os curiosos da Flip que os sermões do Padre Vieira já falavam de corrupção e que a escravidão sempre foi o sistema estruturante na nossa história do Brasil, onde o racismo é dissimulado.
Foi oportuna a escolha do Mário de Andrade como homenageado, não só pelos 70 anos de sua morte, pela sua genialidade e por ser o mais atuante modernista , mas também por ter valorizado as artes populares e ter trabalhado na preservação do patrimônio cultural do território brasileiro.Dizia que o dia em que o Brasil olhasse para a arte popular seria um país melhor.Musicólogo, além de muito mais, ( ele mesmo escreveu Eu sou Trezentos, eu sou Trezentos e Cincoenta ) desbravou a música popular de raiz, os ritmos indígenas, as músicas africanas, os ranchos, as modinhas, as cirandas…. : a cara de Paraty.
A cidade de São Paulo esteve na berlinda nessa Flip numa pauta inspirada pelo livro Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade. O historiador Bóris Fausto lembrou, saudosista e fazendo a plateia rir, da São Paulo de antigamente, que em nada lembra a São Paulo de hoje, só melhorando no quesito – hospitais.
Uma mesa reuniu o jornalista Roberto Pompeu de Toledo que acaba de lançar mais um livro sobre São Paulo e Carlos Augusto Calil , autor de um livro a respeito do trabalho de Mário de Andrade no Departamento de Cultura da cidade. Falaram da época em que São Paulo era a capital da vertigem, do contexto da Semana da Arte Moderna de 22, dos salões literários e sobre a elite que se propunha a investir nas necessidades de São Paulo, como na USP, no MASP, no MAM, na Bienal e até nos estúdios da Vera Cruz.
Na linha do pensamento de Mário de Andrade da cidade como território, o antropólogo Antonio Risério e o poeta Eucanaã Ferraz debateram arquitetura e lamentaram que as grandes cidades hoje carecem de espaços de convívio e se caracterizam pela expansão, segregação e a exclusão. O chão precisa ser compartilhável. ”Não existe tragédia a caminho. A merda já aconteceu. Agora é remediar”.Para surpresa da plateia e de quem critica o Haddad na questão da ciclovia, o prefeito foi elogiado por ser o primeiro a encarar o automóvel e a pensar na cidade do ponto de vista urbanístico.
Desvairada também começa a ficar Paraty que, fora das festas,sempre foi pacata. Hoje sofre com registros de violência,falta de infraestrutura e vê seu patrimônio cultural e ambiental ameaçado.Uma passeata de moradores tomou conta da ponte no sábado, na frente da tenda, pedindo paz e segurança.
A crise política , como não poderia deixar de ser, surgiu em quase todas as conversas da Flip. Com muito mais perguntas do que respostas, mediadores e plateia indagaram convidados sobre o que vai acontecer daqui pra frente e ninguém se atreveu a dar uma previsão. Houve encontros sobre política na Casa Folha .No primeiro, foram discutidas as razões da crise no governo Dilma. Por que degringolou ? O colunista Bernardo Mello Franco frisou as pedaladas nas contas públicas para disfarçar o desarranjo econômico e se reeleger. O coordenador nacional do MST ( Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) Guilherme Boulos, depois de atacar duramente o presidente da Câmara Eduardo Cunha por suas manobras políticas para aprovar projetos de seu interesse, criticou as estratégias do PT no governo e o ajuste fiscal proposto agora , penalizando o lombo dos mais pobres.
A Casa Folha também ouviu o cientista político Demétrio Magnoli sobre a situação do Brasil no cenário mundial. Ele criticou o PT, Dilma e Lula por terem prometido um governo de ruptura com um regime social injusto e ofereceu um governo de restauração de uma política antiga, da era Vargas – patrimonialista , com um estado centralizador, apoiado por um grupo de empresários.Para ele, a ruptura se deu com FHC. E agora, Magnolli, o que vai acontecer? Resposta : Não dá para saber.Ainda não apareceu nenhuma força política interessada em dialogar com a indignação popular.
Mas por que tanta política numa festa de literatura ? A Flip sempre saiu do território literário para discutir assuntos diversos do interesse público , tendo como critério a seleção de autores de bons livros. Mas neste ano viajou mais longe : falou de matemática, de neurociência, de narcotráfico e repito, muito de política.
Essa foi a Flip da crise – a mundial com seus conflitos, a brasileira que está num impasse , a de São Paulo desvairada e a de Paraty insegura. Como afago, a poeta lisboeta Matilde Campilho que mora no Rio falou de poesia de um jeito que conquistou toda a Flip. Disse que a crise vai passar mas até lá o caminho é de pedra. Mas se o mundo está arrebentado e o Brasil está arrebentado, na impossibilidade de salvá-los sozinho, a poeta aconselha a salvar cada momento, um minuto ou segundo, nos salvar e salvar quem está do nosso lado.
Depois de ouvir a Matilde, ao turista aprendiz só restou ir à livraria e comprar um livro de poesia. Que todos se salvem.